sexta-feira, 27 de março de 2009

Partida

Tela de Christopher Gallego


Não me olhou mais de frente,

Arrancou a pele velha,

Marcada pelas cerimônias.

Seu corpo flácido, envelhecido,

Agora buscava novas promessas.


Era a jornada

Fluindo para o fim das coisas,

Buscando o fulgor perdido

Em algum lugar do passado.


Eu o quis, mas não era humano.

Era um ser obsessivo e intemporal,

De coração cimentado,

Seco para as palavras de súplica.


Sua casa ficou vazia,

O sol fez secar as plantas da varanda.

Eu vi os defumadores sem incenso,

E a solidão levantando as cortinas.


O lugar virou cemitério,

Todos morreram

Com o coração perfurado.

Fiquei surda com o silêncio da rua.

terça-feira, 24 de março de 2009

Vestígios

Tela de Adonis Kuzer


Espalhamos pelo chão nossos desvios.

Estamos vivendo o tremor da felicidade.

Dividimos pensamentos

E a densidade das coisas.


Aprendemos a imortalidade

Quando somos dois

Nesta cama de folhas.


Estou feliz

Quando a janela de seus olhos me anuncia.

Todavia, desconheço as águas desse regato

Que corre à revelia,

Tentando se entranhar em nossa trilha.


Essa água lamacenta

Que se aproxima de nossos pés.

Essa sombra que se alonga

Com asas de escuridão,

Deixando-nos com vestígios

De profunda solidão.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Dilúvio

Tela de Gustav Klimt


Líquida me tornei em teus braços,

Escorri-me no que era exato,
Derramei-me em teu dorso quente,

Que se dobrou em concha a me represar.


Procurei fendas, escoei regatos,
Encontrando braços a me amparar.

Derrubei barreiras, modulei mil voltas,

Até ser inteira em um jarro teu.


Fui bebida aos goles de quem febre ardia

E foi tão nascente essa sede louca

Que senti sua boca, eterno sugar.


Num fervor que pede, consenti respingos,

Dessa minha água eu fiz derramar.
Evaporei gotas ondulando pele,

Escorri-me em névoa para te alcançar.


Penetrei abismos e fui sacudida,
Até dissolver-me neste teu olhar.

Escoei doçura num último espasmo

De êxtase líquido, por te abraçar.


E virei dilúvio, encharquei-me em brasas,
Implorei tua boca para me beijar.

Tive o paraiso, bolhas de espuma,

Agora estou quieta neste teu olhar.

sábado, 21 de março de 2009

Alumbramento

Tela de Donato Giancola


Se proibirem seu amor
Grite.

Pegue outra via,
Aquela baldia.

Não perca em nada
O amplexo do pulso.
O átimo que voa

No carrilhão das horas.

Desobedeça a regra,
Desmanche o mistério,

Resvale no imponderável,
Crie o momento da vertigem

Para esse amor crescer
Ao som da eternidade.


Deixe que ele viva

Através da loucura,
Do encontro que chega assim

Deslocando o pensamento.


Ele vem contra vontades,
Se institui contra a corrente

E diz que
Amor é momento,

É maior que alumbramento.

Dança Sufi

O Olho de Deus



Dancei ao som da citara e

Girei com o universo

Nas batidas da tabla

Que ressoava no coração.

Incendiei como uma tocha,

Juntei-me a imensidão.


Rompi o horizonte

Perseguindo o sol viajante.

Agora, toda a terra vacila

Aos meus pés embriagados.


Danço para ser folha,

Esqueço o corpo e o calafrio.

Estou seguro neste girar eterno,

Conheço o segredo

Para ser Ele.


Giro incandescendo

Na imensidão cósmica

O êxtase místico.


Sou o sol

Irradiando um caminho.

Vou estar

Com aquele que tudo vê,

Que tudo ouve.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Olhos Vazios

Tela de Dino Vaals



Quando me olhas morro um pouco,

Se não me olhas morro mais,

Se não te vejo fico louca,

De nada sou mais capaz.


Se em teu rosto não vaga nuvem,

No meu, elas são demais.

Tormento de chuva fina,

Alcança clarões, me desfaz.


Sigo teus passos, teu reflexo,

De coração aos pedaços

Fascinada pelo aperto

De tuas mãos em meu amplexo.


De tudo que me tiraste

Ficou somente o abismo.

Um frio entre as cobertas

E um par de olhos vazios.

Muitas Moradas

Tela de Carel Fabritius



Tenho muitas moradas

Em minha casa.

Em cada canto, uma recordação

De cristalina claridade.


Dentro da casa vivem estações,

Sob o ladrilho das palavras.


O jardim é da primavera.

Ali as folhas sussurram,

Espalham-se equivocando a realidade.

Aceitamos as coisas como vêem.


O outono das salas

Pesam e dizem mais do que dizem.

São doces recordações dos filhos,

Os desenhos rabiscados,

Ondulando pensamentos.


O verão saindo das panelas,

O espírito aventureiro dos temperos,

Capaz de viajar o mundo

Através dos pratos exóticos,

Do lenço na cabeça

Respirando o calor dos aromas.

Incendiamos.


O inverno caminha lentamente à noite

Para a cama, no quarto.

A memória se reserva

A uma existência de lembranças

Antes de dormir.

Contendas, desamor, sofrimento,

Tudo acaba onde o amor acontece

Para tecer as estações da casa.

domingo, 8 de março de 2009

Àcido Diluido

Tela de Egon Schiele


Você não pode imaginar
O que me causou,
Quando imersa e quente
Em seus braços
Você me beijou.

Suavemente ouvi:
Diga sim, para mim!

Nadei no lago dos seus olhos,
Ácido diluído,
Princípio do meu fim.

Quando tapou minha boca
Selando-a com beijos de amante,
Deixou nela pesadelos
De sua vida errante.

Terno e cruel num só tempo,
Tatuou-me com mordidas,
Fez-me inflar de desejos
Mesmo estando eu ferida.

Foste um raio sobre-humano,
De difícil entendimento,
Cobrindo-me com seu corpo,
Arrastou-me num tormento.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Novo Dia

Tela de Bocklin


Vê o que te deu

O inicio de teu dia.

Vê a sombra

Que se esgueira nua,

Arrastando lentamente

Trazendo agonia.


Cria tu asas e voa,

Fuja do inicio de teu dia.


Vê tua sombra sob o lodo

E eu voltada para ti,

Visão de anjo.

Subo sozinha

Levando carícias estonteantes

Apartando de ti

Recordações de amante.


Quando estivermos longe

Apartados pela noite negra,

Eu te direi:

Recomece e tente um novo dia

quarta-feira, 4 de março de 2009

Espora de Prata

Tela de Jacob Collins



Fui intimada ao profano,

Maldita espora de prata

Entrego minha alma ao engano,

Mesmo que ela me mate.


Engulo essa água barrenta,

Engasgo e me deixo levar,

Em meio a pisados gravetos

Tragada por esse vagar.


Uma promessa atola,

Vai grudada em meu peito,

Maldita espora de prata

Encravada em meu leito.


Tormenta

Tela de Gregory Crewdson



O tempo é curto

Para que eu descreva o surto

Que esparramei naquele lugar.


Cheguei retumbando tormentas,

Anunciando que vim para

Esparramar contendas.


Era um lugar isolado.

Pessoas falavam e falavam,

Eu seguia todos

Com olhar velado.


Pisei num canteiro de flores,

Levantei vários segredos,

A negra cor das paixões

E uma coleção de dores.


Farto de ver alcei-me ao redor,

Espalhei folhas,

Levantei o pó das coisas,

Vi nos olhos o horror.


Armei um vendaval aziago,

Embalei tal estrago

E para minha tristeza

Arranquei os brincos de uma princesa.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Suspensa no Ar

Tela de Paul Gauguin



Virei sol
No meio da chuva.
Gotas quentes
Escorrem mordidas.
Virei cachoeira
Num lago,
Virei fonte escondida.

Virei grito
No meio da noite,
Respiro sem fôlego
Um ar que é um açoite,
Porque virei grito,
Porque virei noite.

Fiquei suspensa
No ar de uma boca
Porque ela soprava um sim,
Respirei o que ele tinha
Ficou tudo dentro de mim.

Virei jarro,
Fiquei calma,
Repleta
De um êxtase sem fim.