sábado, 19 de novembro de 2011

O Vaso


Tela de Jean-August Dominique Ingres


Chamei por um deus pequenino,
Um que cuidasse dos sussurros e suspiros.
Um que guardasse o calor das mãos,
E afastasse os nevoeiros que se formam no coração
Quando não há mais horizonte.

Chamei-o com a canção das nascentes,
Do recolhimento das lágrimas.
Cantei, com minha voz trespassada de inverno,
A música que um dia guardou o calor de um corpo.

Precisei clamar com brandura
A esse deus das flores e dos perfumes,
Para que me ouvisse ternamente,
E não transformasse minha alma, já enevoada,
Numa contemplação de catástrofe.

Da escuridão, renovada pelo crepúsculo,
Ele surgiu verde em translúcida esmeralda.
Era como um lago transparente
De amortecidos filamentos dourados,
Que dançava a minha volta com passos de veludo.

Sua face cheia de luz sibilava, ao meu redor
Um sopro de flauta, enquanto eu me curvava,
Num lugar de repouso junto às águas.

Mansamente, foi me tornando terra.
Sentia suas mãos sobre mim, alvas,
Cheias de seixos pequenos, moldando miragens
E sonhos dentro da escuridão do corpo.
Juntou em mim pedras que queriam estar vivas.

Pequenas ametistas foram colocadas em mim como um colar.
Dois braços simétricos, desenhados sob a cintura delgada,
E uma configuração de desenhos de pássaros,
Que voavam para dentro de um tapete oriental.

Vi pequenos seres de alma leve, que dançavam
Em grande alegria, espalhando faíscas luminosas.
Exultavam em contentamento ao deus pequenino,
Por ter me tornado vaso, de moldura ideal às oferendas.

Escreveram numa folha de papel
Que eu era um vaso de argila queimada.
Que guardaria as águas das oferendas,
E elas ressuscitariam os mortos.  

Que seria receptáculo de vindimas,
Das safras mais doces.
Que na casa do senhor do vinho,
Eu seria o espírito da alegria.

Nas noites quentes, eu teria que despertar
Para os amantes sedentos e afoitos
Me alcançarem, esparramando poças líquidas
Pelo assoalho noturno.
Mãos perfumadas me tocariam para me levar à boca.

Seria um vaso consagrado, para refletir
A lua no sepulcro dos amantes.
No tabernáculo, eu guardaria 
Ervas maceradas de encantamentos, 
Para celebrar as partidas.

Recolheria em mim o sumo
Que faz cerrar pálpebras para o sono
Dos que estão sendo eternizados.

Nos funerais, recolheria as flores e espalharia perfumes.
Avisaria as partidas, enquanto homens me levantariam
À cabeça, buscando a sombra daquele dia.
Represaria em mim lágrimas ocultas,
E viveria até o fim de tudo, bebendo a minha vida.

sábado, 5 de novembro de 2011

Uma Sombra






Desenho de Dan Thompson



(poema revisitado)


Sou o acaso, um desequilíbrio,
Uma sombra breve que teima em estar.
Substância indecifrável, quase ilegível.
Epiderme solta decifrando mapas,
Buscando lugares, sem nunca encontrar.

Meu olho gira ao redor das coisas,
Encontra vultos, silhuetas soltas.
Esse gosto ácido que me vem à boca,
É minha certeza de já estar morta.
Aqui, não há mais ninguém,
Quem sabe, um reflexo de alguém que foi.

Descubro a pele descarnando um gosto,
Só sei dos instantes desse encontro tosco,
Que em flashs breves brilha no meu corpo.

Condenada à vida, pairo nos meus dias
Carregando o fardo dos momentos foscos.

Rompe o ar deixando promessas,
De existência plena, de ilusão que vai.
De repente, um vento que gira,
Derrubando o que sou e o que fui lá atrás.

Num só mergulho eu sou de novo,
Uma sombra do acaso que não se desfaz.