quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Levante

Tela de Kantsurov Aleksey Ivanovick

Dia virá
Que ouvirei gritos,
Subirão os muros
De lamento e ritos.

Ouvirei temores,
Quebrarão tambores
E terão passado
Pelos teus portões.

Choverá rancores,
Bradarão espadas,
Puxarão correntes,
Matarão serpentes
De afiados dentes,
Sem consolação.

Tremerão horrores,
Ouvindo a trombeta,
Que grita um brado:
Estão dominados,
Somos um país!

Poema

Tela de Álvaro Reja

O poema puro, justo,
Amontoa a toa,
Letra, augúrio,
Tinta negra
Que escorre
Num estranho olhar.

Junta-se pedaços,
Desfaz-se os compassos,
Recola um halo
De forte intenção.


Reta a linha se alinha,
Declina, desalinha,
Perdida de mim.
Enfim aparece,
Inteiro ao acaso,
Alcança seu canto
De poema encanto,
Entretanto,
Enfim, mas nem tanto.

Ele

Ilustração de Felix Vallotton

Pela primeira vez
Ele veio e se mostrou a mim,
Quando o dia resplandecia
E eu só dizia sim.

À noite
Em seu glamour de manto,
A salpicar estrelas,
Engana e esconde,
A realidade diurna
Que ele tem em si.

Vem num corpo
De calor e fúria
Que emoções transpassam,
Dobrando-me ao chão.
Minha porta aberta,
Diz que quer e chora,
Por entrar pisando
O meu coração.

Oscilo folha,
Desprendida em haste
E me junto a ele
Que nunca diz não.

Vem falando
As palavras certas,
Abrindo os braços,
Acolhendo em laço
O meu corpo nu.

Minha voz flutua
Como borboleta
Que deixou casulo
E vive feliz.

Digo-lhe os segredos
Que guardei de mim,
Dou-lhe o sorriso,
Que é meu jardim.

E suas mãos mudas
Tapa minha boca,
Dizendo que só elas
Falarão em mim.



sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Saudade

Tela de Alicia Woodman

Que saudade é essa
Que passa
Que teima em chamar.
Que transpassa
E enreda voltas
Por um suspirar.

As lembranças vazam
Uma dentro da outra.
Minha memória acordada
Forma palavras
Que reproduz
Saudade.

O imaginário trazendo
Fantasmas feitos de vento,
Tormento.
Encubro o passado
Com meu grito de
Saudade.

sábado, 13 de outubro de 2007

Gratidão

Tela de Álvaro Reja

Quando sou grato
Desfruto a eternidade.
Nada nem mesmo a morte
Anulará o que vivi.

Ela só poderá privar-me
Do futuro que não é.
A gratidão liberta-me dele,
Pelo saber alegre do que foi.

Aceito a gratidão como uma virtude,
O dever é amargo e nos torna pequenos.
A alegria da gratidão se transforma
Em amor somado ao amor.

O segredo da amizade
É a alegria comum.
A amizade dança ao nosso redor
E pede gratidão.

Pede que despertemos para dar graças.
Ser grato é levar dentro de si
Um eco de alegria.

O mistério da gratidão
Não é o prazer que temos com ela,
Mas o obstáculo que com ela vencemos.
Ele se opõe ao egoísmo e o supera.

A gratidão é uma virtude leve e luminosa,
Feliz e humilde.
Que graça mais fácil e mais necessária
Que ser grato.
Agradecer é dar, ser grato é dividir.

Essa alegria compartilhada,
Se não se agradece
É porque não se quer partilhar.
A gratidão dá a si mesma.

Ela vem somada a generosidade.
A ingratidão não vive
Pela incapacidade de receber,
Mas porque é incapaz de retribuir,
Não se alegra, não ama.

A gratidão não tem nada a dar,
Além do prazer de ter recebido!

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Uma Sombra

Ilustração de Dan Thompson

Sou o acaso
Nesta cidade de pedras.
Sou uma sombra
De substância ilegível.
A epiderme se solta
Para decifrar mapas,
Achar lugares.
Estátua humana
De concreto falso,
Olha-me com a certeza
De poder capturar-me
Com seu olho de fisgar louco.
Eu tenho um
Gosto ácido na boca.
Só sei dos instantes
Que em flashs atravessa
O meu corpo breve.
Rompe o ar,
Deixando uma promessa
De existência plena.
Mas de repente
Um vento vem
Girando num barulho,
Derruba o que fui e o que sou
Num só mergulho.
E sou de novo
Uma sombra do acaso.