quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A Estrada

Tela de Marc Chagall


A estrada que ele rodava

Era de terra dura, escamada,

Com um brilho que esvoaçava,

Agitando sílica no ar.


Couraças de homens brutos

À beira do caminho

Mergulhavam olhos

Dentro do lugar.

Naquele carro, rumo ao sul,

Ele se perdia

Num emaranhado de poeira.


Ia imantado na cabine,

Às mãos grudadas ao volante.

Dos olhos amendoados,

Rasos de líquido verde,

Saltavam tentáculos

Que se enrolavam

Na paisagem atormentada.


Dentro dele
Era tecido um sonho:

Minúsculas conchinhas

Esvoaçavam num delicado bordado.

No fundo de um oceano azulado,

Pulsando no compasso

Do coração dele,
Uma sereia o atraia

Para seus braços.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Fome Estranha


Foto de Emma Hack


Vem saciar-me

Desta fome estranha,

Que cresce e me possui.


Vem alimentar-me

Daquilo que enlouquece,

Daquilo que cega

E que me alucina.


Meu desejo é chama

Que arde eternamente,

Que vem de não sei onde,

Que não tem fim nem começo,

Que está aquém de mim.


Atenda-me agora,

Interpreta-me com teus dedos,

Com tuas interrogações,

Com teu olhar de desejo,

Que incendiarei para ti.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Fio de Luz

Fotografia Lee Friedlander



Desconhecia esse novo olhar.

Não sabia deste brilho sutil

Tramando encontro.


Andava ao acaso,

Temendo raios perdidos,

Buscando abrigo da chuva

Que se formava no céu.


Oscilava em fio de luz,

Para ver o aventureiro,

O caçador de abraços

Que me buscava ao léu.


Paciente esperava

Por esse encontro secreto,

Esse acaso de pingos

Que caiam do céu.


Prisioneira estarei,

Num fio de luz

Que traduz,

Seu corpo escorrendo no meu

Quando tudo em volta reluz.

Redonda Lua

Fotografia de Sergio Motta



Vi a Lua orbitar em céu profundo,

Revirar-se redonda, maternal,

Espelhar-se quieta,

No cosmo denso e nebuloso.


Pontos fosforescentes

De pequenas estrelas,

Piscam para mim

Como olhos de gato.


O passeio da Lua

No ventre do céu

Desenha um barco,

Fino casco a balançar

No imenso mar.


Ela, grávida

De inexistente éter,

Só querendo se mostrar.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

O Bosque

Tela de Odilon Redon



Cresci à sombra dos bosques.

Desde sempre senti o aroma

Da madeira coral entre meus dedos.


Estremeci cada vez

Que as folhas da canela

Foram esmagadas

Para o chá do despertar.


Chorei todas às vezes

Que o sândalo foi colhido.


Viajei incógnita para ver

O traçado nebuloso dos cedros

E as sementes do cardamomo.


Vi olhos no meu caminho,

Mas a iluminação da primavera

Foi a melhor mensageira.


Nas sombras do bosque,

O fio condutor que me levava

Pelo labirinto de galhos,

Era seu hálito de menta.


Foi o sorriso breve

Do bambuzal tocando caniço,

Quem me avisou de teu perfume.


Estive no refúgio da noz moscada

E sorri pela manhã.

Deslizei no coração das mangueiras

E suguei seu sumo amarelo.


Afastei as hastes de junco

Até chegar junto à fonte

Das oferendas.


Supliquei o bálsamo da vontade

E fui abraçada

Pela fumaça da cânfora ardente.


Finalmente,

Deitei-me em águas de orvalho.

Banhei-me nas irradiações de seu olhar.

Levantei-me inteiramente renovada

Para beijar o ar que era seu.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Os Dedos



Ilustração (desconheço o autor)



Os dedos se entrelaçam,

Mudos, telepáticos.

No meio da mão

Sussurram beijos.


Os olhos ficam perdidos

Num leito de suspiros.

Pupilas perseguem

O contorno do peito

Que arfa vontades e desejo.


Os dedos molhados se dobram

Até os sedentos artelhos.

Dedilham flutuações no espaço.

Contornam ofensas,

Demonstram afetos.


Devagar sobrevoa os ombros,

Atravessa omoplatas,

Sobe o pescoço.


Num frenesi metafísico,

Sugo a língua sinuosa e nua,

Que dança louca

Em minha boca.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O Vento

Tela de Donato Giancola



Hoje fui apossada

Pela magia difusa

De um vento sussurrante.


Falava-me sobre a brisa.

Dizia dos sopros lentos.

Contava-me da amplidão

Dos lugares ermos

E do encontro

De homens dispersos.


Falava-me de levantar o pó

Das coisas adormecidas,

De sua procura por frestas

E da possibilidade

De redemoinhos.


Tilintava sons desconhecidos

Para instintivamente

Assustar presságios.


Revirava nuvens

Formando figuras

Que traziam chuva.


Estremecia tudo

Ondulando em círculos,

Seres perdidos,

Que ansiaram encontrar-se.

Prometida

Tela de Odd Nerdrun



Vem cobrir-me de pétalas,
Pois a noite já se dobra sobre mim.
Afasta o meu sono
E fale se é certo o que ouvi.

Diga do vinho que tomou,
Se era mesmo sangue?
Sim, quero saber tudo!
Do tremor das tamareiras
E das espadas reluzentes
Que sangraram sentinelas.

Diga sobre o deserto
E as cabeças descobertas.
Diga se é verdade
Que olhos pediam clemência
E ninguém os via?

Sonhei com o uivo da noite
Gritando piedade
E um rio de sangue
Que transbordava.

Relâmpagos de fogo
Desenham no céu um clamor.

Vem, cubra-me com sua pele fustigada.
Lamberei suas chagas para que se curem
E possas de novo ouvir.

Conte-me que não verei teu sangue
E de teu irmão manchar
Meu vestido
Engastado de lágrimas.

Vem dizer-me
Que há esperança
De ouvirmos a música de jubilo.

Estou insone
Nesta longa noite cega.
Aguardo que minha voz saia e grite:
“Prometida estou
E me encherei de gloria por todos !”