domingo, 26 de dezembro de 2010

Flecha da Noite


 Ilustração de Michael Whelan


Fui retirada de meus aposentos
Quando a lua estava em esplendor de fogo.
Lua imensa, pronta para os rituais sagrados.

Banharam-me com leite
E escreveram rezas sobre minha pele.
Solenes poemas de signos encantados
Para transformar as marés.

Queimaram minerais e incensos
Para os deuses adormecidos,
E eles acordaram.

Vestiram-me de folhas
E amordaçaram minha boca.
Vi olhos de tenazes, fosforescentes,
Envoltos em trovões.

Uma visão atormentada de braços abertos,
Para receber um corpo incandescente.

Fechei os olhos para ouvir
O canto ondulante e embriagador da cerimônia.
Cada nota saltava contagiosa
Sob o pentagrama dos meus dedos.

Todas as coisas foram se distanciando,
Os clamores, o medo,
Até que me aquietei para receber
A flecha da noite.

Entre o Céu e a Terra


 Fotografia de Eugeny Kozhevnikov


Ontem descobri
Que entre o céu e a terra,
Nosso amor cabia inteiro.
Vi pirilampos riscarem o ar
Escrevendo poemas.

Entendi cada palavra
Embebida em orvalho,
Riscada no céu da noite
E elas chegavam líricas.

O sal do choro era lavado
Com minha água doce,
Pois sobre ti,
Minha benevolência recaia.

Descobrimos nossa substância
E deixamos de ser névoa adormecida.
Estávamos dentro das constelações
Como um escorpião alucinado.

Tecemos um entrelaçado de flores,
Guardando em nós o incógnito.
A cabala do vento escrevia
Nessa realidade sobreposta e perfeita,
Que entre o céu e a terra
Nosso amor cabia inteiro.

A Porta


 Ilustração de Donato Giancola


Ela estava quieta.
Olhos brilhantes, talvez antevendo
O que veria quando a porta se abrisse.
A voz dele se acumulava em caixas
No seu coração.
Uma presença perfeita,
Imponderável, abriria sua porta,
Transpassada de ternura.

Seria salva, mas, por mais que relançasse
Olhares para a porta dos sonhos,
Ela permanecia cerrada.
A roda do destino girava,
Enquanto um cântico longínquo
De vozes celestiais dizia para esperar.

Uma luz sobrenatural
Mergulhava de seus olhos para o vácuo.
Tinha a alma plena de certezas
E pressupunha sua volta.
Estava presa nesse movimento imperceptível
Que se precipitava a porta e a ele.

Sua voz ressoava pela sala
E imagens extraordinárias se formavam,
Tirando sua tranqüilidade.
Sua noite estava cheia de fagulhas
Crepitantes e vapores densos.

Quando viu os raios do sol
Entrando na sala,
Caiu envenenada por vertigens,
Terminava sua espera, embriagada e só.

As Coisas


Tela de Cornelius Gijsbrechts


Ainda não te falei tudo
Sobre a medida do vento e da água.
De onde guardei na memória
O segredo da sede cristalizada
E da lembrança da saliva densa.

Não te falei do cometa de fogo,
Que serpenteia o céu de minha boca,
Embriagando-me na realidade
Dos teus sonhos.

Não te falei do trovão que não demora,
Que se faz música e grita,
Rechaçando sob o medo dos homens.

Do verão escaldante que entra na derme,
Apunhalando a pele frágil,
Transformando a seda em débil folha seca.

Não te falei sobre o temor das horas.
De como elas correm pelas janelas dos olhos,
Opondo-se ao querer do sono imperturbável.

Sobre a noite que engole o dia,
Esparramando sua luz difusa,
Escondendo as vontades sombrias dos amantes.

Não te falei das canções da alma,
Das que nos levam a habitar tendas,
A procurar espadas e consolar princesas.

Não te falei do que se esconde
Sob as ondas dos meus cabelos,
Das tempestades que ali brotam
Depois de lhes colocar promessas.

Do uivo dos loucos que se dizem poetas.
Que andam em nuvens e se acham pássaros.
Do vinho que fiz virar sangue quando te beijei.
Do escudo de dentes cerrados
Opondo-se a todos esses dizeres que fiz para ti.

Teu Serei


Tela de Anna Lea Marritt


Ouvi sua voz que me dizia
Para eu resistir.
Suas palavras eram complexas
E diziam numa impecável retórica:

“Não desista de mim,
Mesmo que penses que sou
Apenas uma alucinação,
Que nada mais resta para contar.
Não desista, eu estou aqui.
Vou abrir-te como a uma rosa,
Dar-te os sonhos que sonhaste.
Desviarei dos caminhos tortuosos,
Encurtarei as distâncias,
E quando no céu apontar a lua,
Teu será o que outras mãos
Detém agora“.

(Ganhou concurso de poesia da Proibido Proibir - premio Cell)

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Vestida de Sombra


 Tela de Odd Nerdrum

Você me reconhece
Quando te chamo do vazio?
Estou abandonada nesse horizonte,
Pois fui buscar meu destino.

Ninguém sabe quem sou,
Estou vestida de sombra.

Fria como mármore,
Ando passos incertos
Contando quantas vidas já vivi.

Os fantasmas levaram meus cabelos
E meus vestidos desapareceram.
Minha alma se enche de sonhos antigos,
E alguém me sopra
Furtivas ternuras de consolo.

Estou me esquecendo de tudo.
Procuro teus olhos
Entre tantos que me olham,
Para pedir que me guies
Dentro de um coração certo.

Vejo somente um lugar
Num céu de silêncio,
E tudo se dilui nos séculos que vivi.
Deixo os abraços, os amores,
Angustias, e fracassos.

Estou dentro do barco do silêncio,
Perdida nesse tempo escurecido

Você que me tocou um dia,
Escuta-me, pois te chamo.
Afasta-me daqui,
Porque muitos mortos já me chamam.


quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Muralha


Tela Wladimir Kush

Construí uma muralha
A minha volta,
Completamente talhada
Para guardar silêncios extremos.

Noturno lugar
De aparência antiga,
Lugar de sacrifícios e
De juventude desesperada.

Vivi no interior desta
Cidade de arcos,
Como uma mulher de fervor,
De cândida fala.

Agora vou suspensa pelo vento
E desvio dos espinhos
Que se formaram
Nas trepadeiras aladas.

Queimo minha loucura
Nos incensos de jasmim
E sinto minha vida
Se apartando, pouco a pouco num fim.

Vejo a treva na soleira da porta.
Uma luz tênue sai de minha cabeça e
Estrelas voam ao meu redor.
Ainda tenho a ilusão de felicidade.

Derramo-me sob os degraus da escada.
Diluo-me pelas frestas das pedras.
Vou caindo para fora das muralhas,
Muito antes de viver em mim.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Pó dos Sonhos


 (desconheço o autor)


Busco sua alma cansada
Que flutua breve.
Acaricio tuas flores
Com as falanges atrevidas.

Bebo-te inteiro nesses instantes,
Depois volto a ser lago,
Água de solidão,
Nômade da sombra
Que beira teu telhado.

Procuro teus dedos curiosos
Que rodeiam meus pomos maduros,
Redondos, prontos para a sede.

Inútil explicar o sabor,
Quando a boca canta de desejo.
Enigma de fogo,
Furacão, vertigem de gotas.

Perdemo-nos no pó dos sonhos.
Longos dedos de tamarindo,
Sufoca minha garganta.

Minha cintura é cadencia
Que cresce numa angustia
Estabelecida num bosque
Abundante de loucura.

Um deus penetra minha carne,
Jorrando a música celestial.
Tatua em mim hieróglifos,
Com seu nome de rio caudaloso.

Sou uma marca
Em seu calendário de encontros,
Onde só o céu pode saber.
Contamos as horas, os passos,
Pequenos sinais dentro de nossa fábula.

Duas figuras imaginárias
Adamascadas nos tecidos de nosso quarto.
Dois mortais voltejando como abelhas
No sexo febril de cada um.

Mãos invisíveis acariciam as folhas
Que se unem para atar a distancia desse amor.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Aquela que Volta


 (desconheço o autor)


Sombras me acompanham
De manhã, à noite,
Perdidas de meu alcance.
Dançam a sutileza e o compasso
Que sai de mim.

Enganam-me às vezes,
Quando se tornam estátuas adornadas.
Bocejam disfarçando,
Cercam-se de pássaros,
Que a minha volta dão corrupios.
Sopram meus cabelos,
Derrubam minha tiara
E riem dessa falsa coroa
Que aperta minha cabeça.

Que sei eu das sombras,
Senão dessas que me atiram flores?
Dão voltas para que eu me perca de mim
E do sentido urgente
De minha passagem neste lugar.

Um dia, eu também serei sombra
E cantarei para que sonhem.
Farei voarem cortinas e
Tocarei de leve, faces e mãos.

Minha casa será o ar, o vinho
Que entrar pelas bocas.
Serei comparada à brisa,
A que se perdeu entre as estrelas.
A que sempre volta na chuva,
Que escorre nas pedras
E escreve um nome.

Fortaleza




Tela de Odd Nerdrun

O lugar que ele me deixou
Era feito de granizo petrificado.
Fortaleza que me escondia das feras.
Cauteloso, ele foi todos os dias
Que me guardou.

O bosque em volta era apressado
E adensava toda à volta dos muros.
Como um mercador de pedras preciosas,
Tinha em mim sua pérola rara.

Todas as noites, pendurava a lua
No firmamento e eu a sonhava.
Os muros eram manchados de sangue,
Para enganar salteadores,
Que imaginavam ser ali
O templo da sorte.

Fora das paredes ouvia-se sempre
Uma arenga guerreira,
Que desfolhavam árvores de cristais.

Dentro, uma lunação poética,
Que se espalhava pelos ladrilhos,
Enquanto eu andava
Tamborilando meus pés
Nas lajotas desenhadas
Pelos sacerdotes.

Ele recebia de meus lábios,
Em rituais de pompa,
Promessas seladas com
A água maleável de minha boca.

Um brilho refulgente
Nascia de seus olhos,
Quando era envolvido
Por meus braços de cristal de rocha.

Era a eleita de seus sonhos
E me coroava toda à noite
Com seu canto acasalador.

Fazia em mim furacões e recebia
Um retumbar ondulante de gemidos.
Eram noites adamantinas, atormentadas,
Como num chamado de guerra.

Estar ali era como viver num
Planeta jovem.
Sentia esse flecheiro de dardos fulminantes
Perfurar-me constantemente,
Até deixar o Monte de Vênus
Em tremor galáctico.

A colina de frutos sagrados,
De polpa adocicada,
Era açoitada pela língua sanguínea
De escorpião rei, dia e noite.

Noites divinas, onde a chuva se empoçava
Naquele lago profundo.
Dali nasciam os nomes sagrados,
Recitados pelos deuses enlouquecidos.

Fazia brotar de mim o fogo consumidor
De madeira nobre.
Enquanto dele saia o canto de guerra,
Que interpretava a dança das chamas,
Apagando-a com sua resina branca.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Tarde Demais


 Fotografia de Eugeny Kozhevnikov

O que é tarde em nós me diz
Que não quer ser.
Nossas manhãs gritam
Que está chegando à hora.
Esse andar de alma derrotada
Que se acerca de nosso caminho,
Que nos envolve,
Afastando-nos dos passos
Que fizemos juntos,
Insistem em dizer
Que podíamos ter vivido mais.

Um medo atávico de ter razão,
De já saber que vamos vazando
Num sumidouro,
Subtraindo o tempo
E o direito as confidencias,
Deixa-nos vazios.

Declarávamos de forma tão exata,
Um amor que queria morrer junto,
Mas que agora espreita o resto do dia
Perdido dentro de pequenas coisas.

Sei que necessito do eterno,
Das descobertas dentro da pele,
Mas estou indo embora.
Sinto no rosto a derrota e
Uma ventania desfigurante.

Refazemos nossas horas
Todos os dias e elas são efêmeras.
A alma não está mais aqui,
É qualquer coisa de sombra,
De lugar vazio que não volta.
Qualquer coisa de nós dois
Que não existe mais.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Silêncios Abismais

 Tela de Odd Nerdrun

Incandescente flecha da individualidade,
Atirada na superfície das coisas.
Delírio iluminado,
Transbordante de mistérios
E desesperos.

Estou como o templo do fogo perpétuo,
Mensageira do passado,
Carregado de melancolia.

Como Ártemis, não temo o desconhecido.
Sei que um ectoplasma fantasmal
Ronda minha sombra,
Enquanto me concentro
Para extirpar uma reminiscência
Saturada de recordações.
Eu não temo mais.

Estou pronta para essa luz impassível,
Reflexo de minha mirada,
Que palpita através do negro e frio espaço.
Vou concentrar-me nas outras vidas
Que estão dentro de mim.
Nas noites mais profundas,
Nos silêncios abismais.

Desfeitos


 Tela de Nagib El-Desouky

Conheci sua sombra
Embriagada em meu jardim.
Um ruído de soluços,
Que implorava por mim.

Virou criança na cama
Sumiu-lhe todo o medo.
Falou de sua vida insana,
Contou-me os seus segredos.

Dancei como a odalisca,
Dei-lhe o melhor de meu corpo.
Sorveu-me a eternidade,
Ficamos quase desfeitos.

Lobos



Tela de Wassily Kandinsky

Introduziram-me num
Círculo de lobos famintos.
Caminho descalça,
Saltando sob as brasas
Que caem de suas bocas.

Ando num mundo novo,
Mas as pessoas são velhas,
Suas mentes apodreceram.
Elas têm medo de minhas palavras.

Agora querem me encerrar
Numa torre de pedras.
O meu coração é um tambor
Apanhado no sótão dos loucos.

Toca violentamente
A favor dos excluídos
E de mim mesma
Que sonha utopias
De rimas inesperadas.

Essa é a realidade atroz
Numa atmosfera morta,
Que caminha em desacerto
Com esse mundo insano.

Premiado delo Concurso de Poemas da PP.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Pesadelo


Tela de Remedios Varo

Alucinante sonho
A revirar-me na cama.
Noite estranha
De minha vida humana.

Abandonada aos delírios,
Imagino fantasmas
E esfinges melancólicas
A revelar minha alma.

Enfrento essa dimensão
De abismo e clausura de medo,
Para ver orquestrarem aos gritos,
Um teatro encenado no inferno.

Torno feiticeira,
Destilando o fel santo dos dias.
Agito o filtro venenoso
Da esperança alheia.

Busco o remorso dos
Desgraçados sem pouso.
Trago uma vela ao lodo negro,
Para vibrar no centro do pesadelo.

Loucura


Tela de David Edward Linn


Agora eu sabia que pagava algum tributo,
As coisas confessadas.
Reconhecia a respiração ofegante,
Sentia estar só, além da sombria
Desolação da eternidade.

Precisava sair dessa escuridão
E voar acima da cinzenta cidade.
Estava cansada da dissipação humana.
Dessa poeira à cata de raios de sol.

Uma corrente raivosa
Arrastava pedaços de pensamentos
E de antemão já sabia que quando
Recobrasse a razão estaria louca.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

As Palavras

 Fotografia de Gerhard Richter

Ela não podia mais deixar
As palavras soltas pela casa.
Eram palavras ocultas
Que queriam surgir.

Seguiam-na como soldados,
Desfilando, implorando um lugar
Num poema qualquer.

Queriam ser invocadas
Por alguém que ama,
Que clama por uma lua.

Como pisca-piscas giravam
No alto da sala,
Perdiam o rumo do papel
E se instalavam numa província
Ao lado da escrivaninha.

Conspiravam entre elas.
Esperavam a inspiração chamá-las.

De repente, o céu se mexia delicadamente,
Juntando nuvens de algodão.
O violino tocava a ária da espera e
Ela dançava dentro da moldura do retrato.

As folhas se juntavam alinhadas
E as palavras enlouquecidas
Organizavam-se entre elas.

Dentro de uma visão matizada
De encantos obscurecidos,
Saltavam aos punhados
Defendendo seu pequeno espaço.

Enroscavam-se em suas idéias lascivas
Perdendo-se em lençóis, flores, beijos estrelados.
Até, finalmente caírem
Sob a folha em branco, esgotadas.

Premiado pelo Concurso de Poemas da PP.

Templo da Incerteza


 Fotografia de Anke Merzbach

Não farei nenhum plano
Para a sua volta.
Nenhuma lógica narrativa,
Ou fio traçado.
Ficarei mergulhada
Nesse jorro alucinante
De palavras poéticas,
Depositadas em ânforas.

Elas se misturarão
A minha saliva,
Serão agora, palavras sagradas,
Que ressuscitarão em rituais
Onde o coração em chamas,
Voltará a ser jovem novamente.

Enamorei-me de um fauno
De palavras doces.
Banhei-me em águas quentes,
Para ser para ele,
Uma ninfa de coração acelerado.

Ficaria assim, sendo a tradução
De suas palavras,
Se ele não me tivesse vendido
Ao templo da incerteza.

Nave


 Tela de Paul Klee

Minha nave flutua no céu de sua boca.
Rompe tentativas de pouso
E entra rubra, como libélula noturna,
Num campo de luz.

Tangente língua, projétil atômico,
Cruza os dentes buscando palavras.
Escreve inscrições ao comandante
Das delícias.

Punhal púrpura rasga a cortina salivar,
Rompendo a janela em pedaços,
Onda imensa estilhaça os beijos.

Corrente de visco, afoga em tremor
Com poderosa avalanche,
Alastrando em êxtase, alcançando os amantes.

Dentro de Nós

 Tela de Dudi Maia Rosa

Cantarei o teu nome todos os dias.
Cantarei nesta vida
E em tantas outras que tiver.
Vou te achar pelo rastro das estrelas,
Pelo pó que deixares pelo caminho.

Cantarei alto quando o orvalho acumulado
Tornar água represada em mim.
Serei lírica para os momentos de solidão,
Trarei o fogo do êxtase místico para bem perto.

Aprenderei com as mutações
A arrumar o vazio e o cheio.
Serei teu centro
E de mim poderás ver
Todos os pontos de partida.

Serei água fluida,
Serei terra para que repouses.
Serei tudo ao mesmo tempo.

Abrirei teus olhos para a escuridão
Dos mistérios e verás o caminho.
Serei teu prisma de cristal
E tua esfera mágica.

Quando formos um
Estaremos renovados dentro de nós.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Cego



Tela de Liu Yuanshou


Foi na extrema escuridão
Que meus sonhos despertaram.
Levantei-me desse lugar de sombras
Vasculhando na memória,
Onde os pesadelos se fabricavam.

Pedi que meus olhos enxergassem
E pudessem te ver de verdade.
Não queria mais a nevoa que te cobria.

Herdei um milagre
E o depositei sob os teus olhos.
Você pensou demais para pegá-lo
E a penumbra tomou conta de nós.

Tudo foi tão breve,
Nem tive tempo de me mostrar
Antes que você se aterrorizasse
Com o prenuncio de eternidade.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Nosso Ideograma


 Tela de Katarina Lomonosov

Busquei sua voz
Entre o salto dos minutos.
O momento das horas
Caiam minuciosos,
Marcando o pulsar
No piscar dos olhos.

Extremos se juntavam
E tentáculos apertavam
O que era frágil.

À noite do sabbat começara.
Velas se acenderam
E o silêncio penetrara
Nas frestas de luz.
Estranhos ruídos surgiam
Nos cantos.
A magia daquela noite vibrava.

Esperei que viesse,
Que mostrasse a face oculta
No momento mágico.
Meus olhos cor de topázio
Transmudaram em fogo
No final da noite.

Mergulhei na inquietação
Daquelas horas roubadas.
Minha visão foi de sua indiferença,
A minha evocação apaixonada.

Fui incapaz de gritar as letras
Que formavam o seu nome.
Deixei que o vento as levasse
Para um lugar subjetivo
Num canto da Terra.

A torre de marfim que construí
Ficou sem as oferendas aos deuses
E eles não se alegraram.

Todo o mosaico que montei
Nas paredes
Formaram um rastro enigmático
Entre as pastilhas de vidro.
Desenhei um motivo mitológico
Inadequado a minha época.

Cantei para ele, palavras hebraicas,
Enquanto dançava o mistério dos sete véus,
Mas nada foi o bastante nessa roda.

Estou numa ilha perdida,
Num oceano sepultado
Entre corais de sangue.
Lentamente retorno aos raios
Que roubei das estrelas
E tento apagar nosso ideograma.