domingo, 28 de fevereiro de 2010

Semente

Tela de Jeremy Lipking


(Ganhou o 89 concurso de poesia da PP.)

Podia te descrever
Como algo que dobra,
Não fosse esse desdobrar de galho solto.

Adivinho as flores rosadas
Soltas, trazendo um sinal orvalhado.
Minha mão cega, em sua pétala febril
Emoldura a dor num paspatur.

Louvo seu perfume de semente tenra
Tragando sua seiva almiscarada.
Cintura insensata que agoniza,
Concilia o impossível no tumulto dos dedos.

Quantos gemidos na palma da mão guardei,
No desdobrar do galho exausto.

Rachel D.Moraes

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O Arco

Tela de David Edward Linn



Não era na cabeça

Que ficava o centro

De disparar o arco,

Era no sono.

Acordar não orientaria a flecha.


Insensato seria explicar

A tensão do arco

Vista do terraço de seu coração.


Falar dessa visão aniquilaria

O fantasma que se formava

Contra a luz

Atravessando os caminhos.


Virou delírio o pesadelo,

O alvo sem centro

Oscilava indiferente.


Avançou para frente

Sua carga de sorte,

Num corpo que se doou

A essa flecha da morte.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Tormentas

Tela de Gibran Kalil Gibran



Penetramos no mais fundo dos abismos,

Onde jaziam insepultos os jovens mortos.

Invocamos os deuses,

E cravamos nossas espadas

Na terra que sangrava.


Olhos vidrados pediam clemência.

Todos eles exalavam o horror da guerra.

Buscamos água para recordar seus feitos,

Enquanto os ungíamos.


Espíritos abandonados saiam dos corpos

E partiam para o centro do céu, jubilosos.

Vimos um cordão de almas se desenhando

No ar formando um cordão de luz.


Eram seus últimos dias radiantes

Na espessa camada de lágrimas.


Deixem que eu possa lavar todo este sangue

E imole um cordeiro na pira dos sacrifícios.

Deixem que eu possa contemplar

O Deus radiante e piedoso

Que orquestrou essa tormenta.

Espectro



Tela de
Sadie Valeri



Estou indo embora.

Basta!

Tracei minha rota de fuga

Sob watts de duas velas.

O cobalto da aflição

Já me enganou muitas vezes.


Difusa e rarefeita existência

Despede-se da musa farta.

Rompeu-se o isolamento da pele,

Para o olhar de porcelana acordar

Em outra era.


A beleza consternada

Ondula voltas seletas

No átrio do imaginário.


Estou indo embora

Pelo fluxo imaterial do sussurro.

Concentro-me

Nesse novo espectro que nasce.

Eterno Meio-Dia

Tela de Zhao Kailin



Apaixonada, transbordante de ternura.

Estou ao lado teu.

Quando me tocas vibro em tremores

De recordação.


Minha pele brilha a cada insignificante toque

E se esvai, porque você é o meu privilegio.


Tenho estado num eterno meio-dia.

Inicio nosso amor a cada retorno.

Habitamos o extremo inspirado na ventura,

No esquecimento do tempo.


Temos a sede dos conquistadores.

Descobrimos o talismã

Marcado no mapa de nossos corpos.

Atravessamos as fronteiras

Chegando às setas do destino

Conquistando um ao outro.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A Fotografia

Tela de Dino Valls



Quantas coisas não verei mais

Sou repentinamente um instantâneo

Tirado num jardim, por alguém,

Que me olhava.


Estou fora da realidade,

Como essas evidências

Que se constroem,

Com o olhar nostálgico.


Eu sou a foto

E te vejo a olhar em mim.

Olhos de saltar procurando estórias.

Flutuo no plano real do papel.


Vejo agora, com teus olhos,

Localizo o que não mais sou.

Falta-me ar, neste espaço de limites,

Ultrapasso-me para ser projetada

Pela retina de teu olhar em mim.

O Tempo

Tela de David Michael Bowers



Esperei por um tempo

Que passou invisível.

Corri atrás das mudanças

Para vê-lo tocar em mim.

A percepção foi uma passagem

Efêmera em meus sentidos.


Esperei por um tempo viajante

Até esbarrar nas horas e renunciá-lo.

Deixei enganar-me pelo fio dos segundos

No espaço do tempo em que se sonhava.


Inevitável tê-lo visto correndo a galope,

No entardecer de minha vida.


Vivi perigosamente,

Esquecendo-me das ciladas.

Escolhi estar cega.

Agora tenho o tempo no fundo de um copo

Insinuando-se absoluto.


Sou testemunha, de tê-lo visto,

Como o ladrão da noite nos meus dias.

A Teia

Tela de Rafal Obinski



A teia sutil foi dando voltas

Fingindo desinteresse em me querer.

Sacudia-se num corpo de trevas

Engendrando caminhos de véu.


Rodava vendavais das pequenas coisas,

Escondendo uma cólera ardente,

De danação entre os dentes.

Custando a retornar seu domínio

Do ir e vir.


Minha carne lívida da fatalidade

Ardia na consumação do atrito.

Fagulhas saltavam dos contornos trapaceiros.

Brotava desse encontro o peso da verdade,

À água amarga da saliva quente.


Nossos caminhos sucumbiram ao abismo.

Fomos tragados pelo desconhecido esquecido,

Num mapa de partículas caóticas.

O plano para desvencilhar a teia da memória

Virou emaranhado de silêncios.


Descubro tarde demais,

Que o que convém a teia é o que me contém.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Oriente



Tela de Majid Arvari

Fiz do Oriente um álibi.

Ignorei a realidade do avesso

Fincando meu sonho na adversidade,

Mudei costumes antigos,

Para ficar com você.


Tatuei ideogramas enigmáticos

Da dinastia de Han em pele tremula.

Fui gueixa em ritual sagrado

Vibrando no tempo das cerejeiras.


O quimono azul de seda

Estampava suas flores,

Enquanto meus cabelos

Estavam com os seus

Em nosso tatame.


Escrevi versos de prata

Na espada de meu samurai.

Na janela dos sonhos,

O sino tocava ao vento

Anunciando impaciente

Que éramos esperados

Pelo fogo celestial.