sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Cego



Tela de Liu Yuanshou


Foi na extrema escuridão
Que meus sonhos despertaram.
Levantei-me desse lugar de sombras
Vasculhando na memória,
Onde os pesadelos se fabricavam.

Pedi que meus olhos enxergassem
E pudessem te ver de verdade.
Não queria mais a nevoa que te cobria.

Herdei um milagre
E o depositei sob os teus olhos.
Você pensou demais para pegá-lo
E a penumbra tomou conta de nós.

Tudo foi tão breve,
Nem tive tempo de me mostrar
Antes que você se aterrorizasse
Com o prenuncio de eternidade.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Nosso Ideograma


 Tela de Katarina Lomonosov

Busquei sua voz
Entre o salto dos minutos.
O momento das horas
Caiam minuciosos,
Marcando o pulsar
No piscar dos olhos.

Extremos se juntavam
E tentáculos apertavam
O que era frágil.

À noite do sabbat começara.
Velas se acenderam
E o silêncio penetrara
Nas frestas de luz.
Estranhos ruídos surgiam
Nos cantos.
A magia daquela noite vibrava.

Esperei que viesse,
Que mostrasse a face oculta
No momento mágico.
Meus olhos cor de topázio
Transmudaram em fogo
No final da noite.

Mergulhei na inquietação
Daquelas horas roubadas.
Minha visão foi de sua indiferença,
A minha evocação apaixonada.

Fui incapaz de gritar as letras
Que formavam o seu nome.
Deixei que o vento as levasse
Para um lugar subjetivo
Num canto da Terra.

A torre de marfim que construí
Ficou sem as oferendas aos deuses
E eles não se alegraram.

Todo o mosaico que montei
Nas paredes
Formaram um rastro enigmático
Entre as pastilhas de vidro.
Desenhei um motivo mitológico
Inadequado a minha época.

Cantei para ele, palavras hebraicas,
Enquanto dançava o mistério dos sete véus,
Mas nada foi o bastante nessa roda.

Estou numa ilha perdida,
Num oceano sepultado
Entre corais de sangue.
Lentamente retorno aos raios
Que roubei das estrelas
E tento apagar nosso ideograma.

Universos


 Tela de Kahlil Gibran

Deus paira na fosforescência
Dos anéis cósmicos,
Senta-se no arco flexível de pó cintilante
Tecendo rendas de estrelas
Pensando em nós como contas.

Enfia-nos em fios sutis de dois em dois,
Iguais lágrimas que se juntam formando pingente.
Solta-nos na Terra em voo leve
Deixa que pousemos em notas sonoras
Ditas em sussurros: Amor, amor, amor...
Enquanto sucumbimos, embriagados e famintos,
Dentro da palma de Sua mão que brinca.

Ele ri e treme ante a delícia do gozo terrestre.
Acaricia o sangue que pulsa
Em nossos corações iluminados.

Quando tudo germina na confusão dos corpos,
Ele desce para beber a espuma de nosso mar.
Lambe a água primordial
Na saliva de nossas bocas,
Enquanto explodem universos.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Crepúsculos


 Tela de Liu Yuanshou

Vamos tocar essas cordas tensas de sangue.
Arbusto vivo queimando o momento.
Lava de pedra incandescente,
Recriada entre os risos das ondas.

Bocas que ardem mordidas,
Dedos presos, inacessíveis ao toque.
Gritos de espanto
Imaginando a melodia cadenciada
E o ritmo escarlate do coração arrítmico
Batendo dentro do ventre.

Espírito navegante,
Agitando-se alucinado num barco frágil,
Dentro de um mar viscoso.

Somos resina líquida
Empoçada entre as coxas.
A alegria brota em cascata
Pelos vãos da noite.

Bebo sua voz, seu caule tenso que ferve.
Sou deus sob sua sombra
Que esmaga a loucura de meu ventre.
O fogo que é seu me incendeia.
O mundo nasce das fendas arrebatadas,
E dos espasmos encontrados
No caminho dos nossos crepúsculos.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Lembrança


Fotografia de Irina Todorova-Kuneva

Deste tudo que me lembro,
Você é quem está
Na vigília dos dias
Em que tremi.

As margens cobiçadas
Do meu leito,
Os lençóis que voavam
Pelo quarto
E o caminho da boca
Que se multiplicava
Saltando na sua sede.

Por trás dessas lembranças,
Ouço o farfalhar
De um corpo que se dobrava
Desvairado, sem sombras
Da solidão dos dias.

Saltei no abismo
Encontrando teus braços
Que me mostraram
Caminhos e cavernas quentes.
E no fundo de um leito,
Um lado a lado
De nós dois sonhando.